quinta-feira, 15 de maio de 2008

Cidadania e Universalidade - Por Roberto da Mata

A idéia de cidadania, criada na Europa ocidental a partir do século XVIII, abriu o caminho para a possibilidade de liquidar os privilégios, leis que atribuíam direitos especiais à nobreza e clero. O conceito de cidadania foi um poderoso instrumento para estabelecer a igualdade universal como um modo de contrabalançar e até mesmo acabar com a teia de privilégios que se cristalizam em diferenciações e hierarquias locais. Se a economia de mercado ocasionou uma grande transformação ao libertar os servos da terra e as propriedades dos senhores feudais, a idéia de cidadania complementou essa evolução, estabelecendo o indivíduo como elemento central e determinante do sistema central (...)

A cidadania foi uma construção histórica não sendo, portanto algo natural. Nem todas as sociedades desenvolvem a cidadania. As que os fazem são aquelas em que há um individualismo, onde o indivíduo, igual ao cidadão, é mais valorizado que outras categorias sociais (como a família ou a comunidade). Isso significa que são os indivíduos que permitem a formação da autoridade pública pela representação consentida e livre de seus interesses. A sociedade passa a ser vista como um clube ou associação de cidadãos com múltiplos interesses. E todos iguais perante a lei e a sociedade.

Nas sociedades tradicionais, como é o caso do Brasil, o indivíduo é menos importante que as relações pessoais: a família, as amizades, o cargo que ocupa. Nos EUA ou na Europa, o indivíduo isolado conta com uma unidade positiva do ponto de vista moral e político; mas aqui no Brasil, o indivíduo isolado e sem relações, é algo considerado como altamente negativo, revelando apenas a solidão de alguém que, sem ter vínculos, é um ser humano marginal em relação aos outros membros da comunidade. O que conta no Brasil não é o cidadão ou o indivíduo e sim a pessoa, o conjunto de relações pessoais que alguém possui na comunidade, é o “jeitinho Brasileiro”, (...)

Em outras palavras, enquanto o processo histórico do Brasil foi no sentido de que tudo já estava previsto e dominado pelo centralismo político, tendo o indivíduo que tentar abrir caminhos nessa estrutura, no processo histórico norte americano, ocorreu o inverso, sendo o espírito individualista que criou as leis e o sistema político.

Com efeito, a palavra cidadão é sempre usada com sentido negativo no Brasil, para marcar a posição de alguém em desvantagem ou mesmo em inferioridade. Quando se diz: “O automóvel pertence aquele cidadão”; ou “o cidadão terá que esperar um pouco” sabe-se que o tratamento universalizante é impessoal é usado não para resolver um problema, como nos países onde a cidadania é valorizada, e sim para dificultar a resolução desse problema. É sintomático o uso da expressão bem brasileira: “Você sabe com quem esta falando?”, que aponta para uma desvalorização do indivíduo e do cidadão, onde todos são iguais, com uma valorização da pessoa, das relações (“sou parente de fulano de tal”, “amigo de sicrano”, etc.). De fato, dizer que é cidadão brasileiro numa situação de conflito com a polícia, pode significar a prisão e até mesmo algumas pancadas.

Assim, antes de irem a qualquer pública, a norma e a “sabedoria” indicam que se deve primeiro descobrir as suas relações naquela área. Daí decorrer a dificuldade da crítica sistemática e consciente a qualquer instituição pelos serviços que ela deveria prestar, esbarra-se sempre nos nexos e laços pessoais. Assim, se a companhia telefônica foi péssima para você, ela foi excelente para mim porque “tenho conhecidos e parentes lá dentro”; ou, como se diz atualmente, “eu tenho prestígio na companhia”. Isso torna a critica social aberta não só algo complicado, mas também suspeito. Porque quem critica é um “criador de caso”, ou um “invejoso”. Vale dizer: é porque a pessoa não tem amigos e foi aquela agência pelo pior caminho do Brasil, o da universalidade, o da cidadania.

(adap de: Da MATA, Roberto. A casa e a rua. SP, Brasiliense, 1985. P. 55-73)

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