quinta-feira, 12 de junho de 2008

Cemitério na Cidade do RJ - A Construção do Território do Sagrado


Sabe-se que no Brasil os sepultamentos durante o período colonial e parte do Império eram realizados ad Sanctus, ou seja, nas igrejas; a idéia da “boa morte” ainda estava vinculada ao momento da morte da pessoa e o seu local de enterramento.

Neste sentido, dentro de uma mentalidade ainda marcada pela época medieval, estar enterrado em uma igreja era estar perto de Deus, o que significava maior possibilidade de uma vida feliz no além. Assim, as igrejas no Brasil recebiam os corpos de seus fiéis desde que tivessem sido, na vida secular, pessoas de certa posição social e que os seus pudessem arcar com as despesas do sepultamento. Desta feita, quanto mais alta a posição social do defunto, maior sua proximidade com o templo, quando não do próprio altar.

Como disse Cruls:

“até então para os mortos de categoria havia sempre uma catacumba no claustro dos conventos ou uma campa no chão dos templos.”

Tudo era organizado para que este momento da morte transcorresse dentro da mais perfeita ordem, a hora da morte era administrada pelo moribundo de forma calma e serena. Os cuidados já haviam sido tomados quanto à distribuição dos bens, pois, através de testamentos, os cuidados eram providenciados a fim de que a vontade do defunto fosse respeitada. O modo do funeral, a mortalha com a qual deveria ser enterrado, o local e a igreja, tudo já havia sido atestado antes e só restava aos seus o cumprimento das ordens.

A vida rude na Colônia, tanto de colonos como de escravos, estava entregue nas mãos do serviço, praticamente voluntário, do hospital da Santa Casa da Misericórdia, que havia sido fundada em 24 Março de 1582, no Rio de Janeiro, pelo padre José de Anchieta.

Ao lado do hospital, em terreno contíguo, foi erguido um cemitério para o sepultamento das pessoas que lá morriam, os injustiçados e escravos; o de Santo Antônio, que estava sob os cuidados dos Franciscanos, onde é hoje o Largo da Carioca, e que também sepultava escravos; “o dos pretos novos, no antigo Largo de Santa Rita, onde até 1825 houve um cruzeiro”; e o dos mulatos, que se situava no Campo do Rocio e depois Largo de São Domingos, já “desaparecido”. A estes dois últimos, Cruls chamou de “mais ou menos clandestinos”, uma vez que os seus corpos eram deixados “à flor da terra”.

O cemitério da Santa Casa chamou a atenção do reverendo Walsh, que visitou o Brasil em 1828, pela forma descuidada com que ali se praticavam os sepultamentos:

“O enterro é muito simples; faz-se uma cova profunda onde os corpos são colocados. Antes de serem enterrados aí, são depositados sobre um estrado numa casinha que fica no meio do cemitério, até que haja um número suficiente de corpos. Então é realizada a cerimônia fúnebre para todos eles, que são colocados nas covas sem caixões. Algumas vezes nus, mas normalmente envoltos em lona. São colocados de lado, geralmente com a cabeça virada para os pés do outro. Nunca estive neste lugar sem que houvesse quatro ou cinco corpos esperando para serem enterrados e ao sair sempre me encontrava com outros chegando.

Até então, nenhum destes cemitérios citados até aqui conhecia práticas de sepultamento organizadas em bases regulares. Em todos eles, o descuido com o sepultamento era uma marca permanente da maneira com a qual eram administrados. Só em 1839, por causada forma precária com que funcionava o da Santa Casa, foi aberto um cemitério na Praia de São Cristóvão, que também ficou a cargo da Santa Casa e era conhecido como Cemitério do Caju (mais tarde renomeado como Cemitério de São Francisco Xavier).

No caso de o morto ser um protestante europeu, o seu destino era o Cemitério dos Ingleses, com sua localização na Gamboa. Tal cemitério havia sido criado em função do “Tratado de Amizade”, datado de 1810, entre Portugal e Inglaterra. J. J. Reis ressalta que “o Cemitério dos Ingleses no Rio de Janeiro estava adaptado à concepção de uma necrópole longe da cidade”. O cemitério dos ingleses não se parecia em nada com o cemitério da Santa Casa. Era limpo, arborizado e à beira da Praia da Gamboa que, naquele tempo, margeava o campo santo.

É por isto que Maria Graham, que visitou o cemitério em 1832, observou admirada o referido campo santo:

Julgo um dos lugares mais deliciosos que jamais contemplei, dominando lindo panorama, em todas as direções. Inclina-se gradualmente para a estrada ao longo da praia, no ponto mais alto de um belo edifício... em frente a este edifício ficam varias pedras e urnas e os vãos monumentos que nós erguemos para relevar a nossa própria tristeza; entre estes e as estradas algumas árvores magníficas.

Com efeito, o contraste entre ambos era notório. Cemitérios católicos eram completamente diferentes dos cemitérios protestantes: a representação do lugar funerário para os protestantes consistia em uma visão mais serena, amenizada pela presença de árvores que, em certo sentido, conferiam ao local uma sensação de paz, a ponto de Graham afirmar que, “(...) se viesse a ser sepultada ali, os que viessem visitá-la não se sentiriam incomodados”.

Entretanto, os cemitérios católicos apresentavam um ambiente tumultuado, no qual corpos insepultos se misturavam à terra deixando uma sensação de desespero e desorganização. Por outro lado, os corpos sepultados pelos católicos ad Sanctus estavam, de certa forma, sempre junto aos vivos, que vez por outra rezavam por eles uma missa em sua memória.

Os protestantes, uma vez que não praticavam sepultamentos em igrejas, tinham o espaço distribuído mais uniformemente, sem “distinções” aparentes entre os defuntos. Já no catolicismo, a variedade de espaços funerários oferecidos pressupunha a própria diferenciação entre mortos. Uns sepultados sob a nave, estes nos adros, aqueles em conventos e uma grande maioria em cemitérios que deixavam os corpos à flor da terra.

Segundo Cláudia Rodrigues, houve um empobrecimento e um esvaziamento dos cortejos fúnebres a partir dos surtos epidêmicos e da conseqüente proibição dos enterros nas igrejas e cemitérios paroquiais (a partir de 1850 na cidade do RJ). Mostra ela ainda, a partir da análise do uso da roupa fúnebre, que ocorreu no mesmo período um declínio vertiginoso dos enterros com mortaIhas de santos. Um sinal, aliás, de que teria havido transformações importantes na devoção. Visto pelo ângulo dos funerais, os santos certamente perderam o prestígio como protetores dos viajantes para o Além.

O cemitério São João Batista – 1860-1870

Esta foto de Leuzinger, premiada na Exposição de Paris, foi tirada de uma chácara onde Darwin teria se hospedado e observado borboletas. Encontramos ai belas esculturas e obras de arte, encomendadas no passado a escultores famosos.

Aí se encontram os restos mortais de pessoas como Santos Dumont, Carmem Miranda, Afonso Penna, Luís Carlos Prestes, Clara Nunes, Ary Barroso, Cazuza, Tom Jobim e outros tantos políticos famosos, além é claro de muitos de nossos antepassados queridos.

O Cemitério São João Batista é de 1852, quando substituiu o de Pedro II, que existia junto ao hospício da praia, freqüentemente invadido pelas águas. A rua que passa à sua frente é o velho Caminho do Berquó (General Polidoro).

Nesta última foto, vemos o cemitério de Campo Grande - situado na avenida Cesário de Melo. Apesar de reformado, ainda apresenta os traços mais marcantes da mercantilização da morte e da apropriação destes espaços sagrados pela Santa Casa da Misericórdia. Apesar de importante, Ainda sim, é um tema pouco estudado pela geografia.

6 comentários:

Anônimo disse...

muito legal essa descrição da histórico-geográfica dos cemitérios.

interessante, mas esquisito!!

abraços, alexandre!!

Dario Lopes disse...

Muito legal Marcio, como sugestao vc poderia se aprofundar na materia analisando os cemiterios no Brasil, alias acho que tera muitas surpresas quando se adentrar no interior brasileiro e ver a cultura tao estranha quanto curiosa....e sugestao!!!
Um forte abraço...
Dario Lopes (lembra de mim?)

eu disse...

Muito interessante e util ( para quem gosta como eu)este assunto. Parabéns. Como sugestão gostaria muito de saber mais sobre os cemitérios do Rio de Janeiro, fui a um enterro no Caju e fiquei impressionado com o tamanho do mesmo.

Em tempo. Já ouviu falar de um cemitério na Rodovia Presidente Dutra proximo a Quatis? ouvi falara que quem cuida dele é a propria dutra. Deve ser interessante a história dele.

abraço
Frank

Anônimo disse...

muito maneira esse lance de cemitérios!!

morria e não sabia que tem gente q se propõe a estudar estes troços!

sinistro!

Anônimo disse...

Parabéns pela pesquisa do assunto.
O texto é muito bom.
Agora,eu fico imaginando se na época que acabaram com o cemitério da Praia da Solidão(pedro II),se alguem se preocupou em transferir os mortos para o São João Batista,ou se eles ficaram por lá mesmo,como foi o caso de muitos outros cemitérios que foram "esquecidos".

Pastor: Ricardo Da Costa disse...

gostei!
vou enviar para um amigo que faz da morte seu objeto de pesquisa!