Um Pequeno texto muito feliz nos "ideais" propostos pela brilhante sociedade ocidental - Nós - em essência - Muito mais preocupados em TER do que SER.
Não tenho boa memória para publicidade. E seria muito
neurótico de minha parte ficar na frente da TV anotando o texto exato do
anúncio só para comentar depois. Não sei se era de um banco, de um provedor de
internet ou de companhia de telefônica.
Só sei que aparecia um tipo em trajes de banho, numa
espreguiçadeira, curtindo sua piscininha. Ao lado, a namorada de maiô. O
locutor começa: “Que tal se você mudasse de namorada... arranjasse uma mais
simpática, mais bonita, mais interessante... etc.” E, num truque de computador,
surge uma loiraça de biquíni contorcendo-se na frente do rapaz. Irresistível.
Espetacular. O carinha se interessa. “Ah, não”, brinca o locutor. “Você não vai
abandonar a sua namorada, não é?” Puf, a loira some e o rapaz volta à situação de início. Que decepção. “Mas você pode”,
festeja o locutor, “mudar de banco ou de seguradora! E a nossa empresa é tão espetacular
quanto a loira desaparecida.”
Fico chocado. Não quero ser moralista demais. O
escandaloso do anúncio não é que se faça o elogio do adultério. O que faz de
pior é tratar a situação “normal” do personagem – muito feliz ali com a
namorada, que nada tinha feito de errado – como sinal de perda, de fracasso, de
burrice.
É como se o anúncio dissesse: meu poder é tão grande,
as tentações que manipulo são tão poderosas, que eu sei e você sabe que o certo
é largar tudo e ir correndo atrás delas. O seu desinteresse pelos meus serviços
– sua fidelidade, seu amor pela namorada – são pura hipocrisia. Muito bem,
estou dando uma chance a você de provar para mim que não é hipócrita: afogue
sua namorada na piscina, delete-a da memória e assine aqui este contrato. A
pessoa que está do seu lado, sabemos, é apenas uma fornecedora de serviços não
muito satisfatória se comparada à loiraça que, agora, você teme perder.
A brutalidade desse anúncio de alguma forma se
autodenuncia. Quanto mais vejo TV, mais dificuldade tenho em dissociar
publicidade de prostituição. Mas o cliente poderia ao menos ter a ilusão de que
gostam mesmo dele. Já estão me tirando isso. Penso em outro anúncio.
O pai aparece dirigindo, com a filha adolescente no
banco de trás. Ela vai logo dizendo: “Pode parar, fico aqui mesmo, não precisa
me levar até a porta”. A situação se repete com outro adolescente. Claro,
pensamos, filhos dessa idade têm vergonha de serem vistos junto com os pais.
Mas não era isso. Um terceiro menino, de uns 11 anos,
faz questão do contrário. Quer que o pai o deixe bem na porta do cinema, onde
será visto pelos amigos. A câmera se afasta, e vemos a razão. É que o pai do
menino tem um carro da marca X... e o garoto quer exibi-lo diante dos
coleguinhas.
Conclusão do amável locutor (será o mesmo?): não é
que seus filhos tenham vergonha de você. Eles têm vergonha é do seu carro.
Mas como o locutor sabe qual é o meu carro? A minha
namorada tudo bem, ele e eu concordamos que é fraquinha, devendo ser dispensada
sem aviso prévio.
Mas o meu carro?
A conclusão do anúncio, claro, é diversa daquela
apresentada. Quando eu comprar o carro indicado, poderei levar meus filhos até
a porta do cinema ou da festinha. Não é que meus filhos devam ter orgulho de
mim: eles devem ter orgulho do meu carro.
Que valores, hein?
Num ambiente desses, dizer que Bush “defende” os “valores
ocidentais” no Iraque – democracia, liberdade, direitos humanos – não soa muito
convincente. Os verdadeiros valores ocidentais, por aqui, parecem ser outros.
Por falar em Ocidentes e em carros, cito um último
anúncio, mais sutil. Vale como símbolo, sem dúvida autoconsciente, da comédia
da globalização e do colapso das economias nacionais do Terceiro Mundo.
Estamos na índia ou no Paquistão, tanto faz. Um rapaz
“étnico” tem um carrinho da década de 60, todo quadrado, não sei de que marca –
alguma fábrica local já extinta. Pega o carro, bate contra um muro, amassa-o de
todos os lados, e até convoca um elefante para sentar-se no capô. (Na Índia, há
elefantes por toda parte, e talvez isso atrapalhe muito o trânsito. Por isso
mesmo, quero um motor mais potente.)
Em todo o caso, o elefante fez um bom serviço. Ajuda
a tornar o carro um pouco mais arredondado, do jeito que o indiano queria. Sim,
pois o que nosso mísero nativo desejava era tornar seu carrinho o mais parecido
possível com o novo modelo da marca Y, um prodígio do design arredondado. E eis
agora o indiano na porta de uma boate, tentando fazer sucesso com a prensagem
elefantina do seu velho modelo. Será que foi buscar o filho?
Mas eles continuam tendo filhos lá na Índia?
E continuam fazendo carros? Melhor importar logo um
de fora. E também a loiraça.
(Marcelo Coelho. Folha de S. Paulo, 09/04/2003.)